Monday, November 21, 2005

Report @ Brasil Novembro

O texto aqui já está revisto à pressa. Não se admirem com erros e toques de português do Brasil na pontuação. O word aqui é brasileiro e a rapidez necessária à transcrição dos textos faz com que fiquem iguais ao que escrevi no momento, ou seja, sem grandes alterações, puro e duro, como se pretende. Para vocês, meus amigos e família. Estou a descobrir também que sou uma nostálgica por natureza. Seja em Portugal ou no Brasil terei sempre saudades de alguém..haverá coisa mais portuguesa?

3 Novembro, Barra Grande
Gostava de tornar estes momentos definitivos mas na minha incapacidade de fazer girar o mundo limito-me a tornar definitivas as palavras. Tudo o resto virá conforme rumar a Natureza. Não há nada mais reconfortante do que sentir o que sinto neste momento, sentir que aqui estou por uma razão muito forte, uma energia qualquer que me trouxe até aqui. As vezes a sensação é de que morri e vim parar a uma espécie de paraíso onde posso ser eu livremente e com toda a serenidade que nunca tinha conhecido antes. Aqui não tenho pressões nem nada que me desvie da minha própria natureza. Não há como negar uma ligação porque no fundo estar livre e ser natural leva-nos ao melhor que há numa relação, a pureza. O instinto e o destino fazem o resto. Confio plenamente no que vier a seguir seja lá o que for... por isso sê livre e sem pressões, segue pelo caminho com liberdade. Só assim se encarará a vida e os seus tropeções com a serenidade necessária para deles retirar o sumo e seguir em frente.

10 Novembro, Arraial da Ajuda
Chegar a Porto Seguro encheu-me os olhos. Cidade bonita, com cor. Depois de 3 semanas na Bahia de Valença chegar aqui é maravilhoso. As lojas e ruas são cuidadas, têm uma aparência de praia europeia..
Partida de Valença às 21h15 sem os meus cds (sem o saber), 8 horas de viagem para Sul.
Primeiro quase acidente: quando um cavalo decide atravessar a estrada sem avisar...
Eram umas 3 da manhã quando o meu sono incomodado num exíguo lugar de autocarro é interrompido por algo que me pareceu naquele instante, louça a partir-se (que raio estava a sonhar?). Naqueles segundos de susto e confusão a única certeza era de que algo estranho tinha acontecido. Seria uma pedra que teria partido o vidro da frente? O lugar do motorista e o da frente é tapado aos passageiros, por isso, por detrás das cortinas não se via o que tinha passado. O sono tira-nos a capacidade de raciocínio. Alguém se lembra de abrir a porta que nos levava ao motorista. Bastante perturbado, explica-nos que na curva se tinha deparado com um camião ainda maior a cortar a sua trajectória. O desvio brusco do choque frontal fez com que o espelho lateral se partisse para dentro da camioneta ferindo o condutor na testa... um pouco mais à frente, o Alves (lembro-me de ter olhado e fixado o nome do nosso condutor, preso no peito) encosta o veiculo e eu ofereço-lhe um tratamento com betadine...foi mais um motivo para arejar um pouco, relaxar daquele momento. Sosseguei-o com a superficialidade do corte, mas perante a possibilidade de um perigo maior ninguém fica imediatamente calmo...pergunto-lhe se está bem para continuar a conduzir-nos. Lembro-me de todos os sustos que já senti quando ao volante...lembro-me das pernas tremerem sem parar. Voltamos para dentro da camioneta e partimos. Sento-me no meu lugar, logo no primeiro do lado direito, e sinto um arrepio. Por um questão de segundos ou centímetros, a vida por um fio...senti uma espécie de aviso, como se na verdade o pior não era suposto acontecer, mas que existe e é iminente. Fecho os olhos, suspiro. Passou-se alguma coisa no tempo ou no universo naquele instante em que me pareceu louça a partir-se. Um lapso de consciência mas despertado por aquele som. Fico uma hora, sem sono, a pensar no que tinha acontecido e lembro-me também de termos mudado de lugar da ultima fila para a primeira. Estamos agora a uns 3 kms de Porto Seguro. Seguimos por uma longa recta, o sol indica-me a localização do mar e vamos em sua direcção. Assumo uma atitude de consciência, despertando do meu sono desconfortável, olhando pelas janelas ora para um lado, ora para outro. Olho para a estrada e reparo nos cumprimentos entre o Alves e os colegas que passam em sentido contrário. Vêem 3 camionetas de seguida. Passa a primeira, passa a segunda e uns metros mais atrás, vem a terceira. Esta, um pouco antes de se cruzar connosco encosta-se à linha do meio e, pela segunda vez, o espelho lateral, já sem espelho, vai contra o motorista. Desta vez já não havia nada para partir...apenas a indignação pela repetição, agora numa recta, pela manhã.

À chegada a Porto Seguro agradeço ao Alves por nos ter salvo a vida sem nos termos apercebido.

11 Novembro, Arraial d´ ajuda
Na festa do Magnólia, discoteca mesmo ao lado da pousada Mucugê Village onde me encontro, a minha reação às coincidências começa a ser mais controlada...em duas festas de Barra Grande reparei num personagem, não sei porquê. Não era bonito nem feio, não se vestia de uma forma estranha ao ponto de olhar, não sei. Comentei que era uma pessoa que me causava uma sensação estranha...hoje percebi porquê. Em Arraial da Ajuda encontro a mesma figura no Magnólia. Dirijo-me a ele e confirmo se era ele que estava em Barra Grande na semana passada. Não me lembro do nome dele ( eu e os nomes..) mas fixei que era do Rio de Janeiro.

16 Novembro, BG
Em arraial surgiu a minha segunda oportunidade de trabalho. Sinto-me dividida entre Barra Grande e esta cidade do Brasil onde tudo começou. De Arraial para o Morro de São Paulo, depois para Itacaré e agora Barra grande. Dizem-me que foi este o percurso do turista nos ultimos 10, 15 anos. Arraial, cidade bonita em que o trance serve de motivo para o consumo. As lojas, os restaurantes e tudo o resto gira em torno do espírito psicadélico, herança hippie, ao ponto de o tornar num objecto comercial por excelência. Em Arraial não senti nada. Em Arraial o povo é cosmopolita: italianos que vêm por 6 meses, franceses de férias em busca de um sonho, burguesia brasileira querendo uma praia para caminhar. As praias de Arraial, que conheci apenas até à Pitinga, não me surpreenderam. Praias de falésias...não são mais bonitas que as da minha Areia Branca, Portugal. Impressionou-me a cor da água, verde ou azul marinha de uma transparência tropical. Mas faltou uma energia, uma vibração, uma ligação, como senti em Barra Grande. O problema de se conhecer locais mágicos e lindos é que todos os outros parecerão menores...em 4 dias apenas Arraial é consumo. Depois de 15 dias na Bahia pura e dura, chegar lá e a Porto Seguro é como visitar uma Europa à Beira Mar com a diferença de que aqui o clima é sempre quente. Dando um exemplo, o ir a um supermercado fez-me viajar até Portugal a um hiper qualquer: variedade de produtos e o cuidado extremo com a aparência e disposição da loja – sinais do tão famoso marketing brasileiro – nas cestas de fruta, um exemplar de cada cortado ao meio e devidamente plastificado para se ver o fruto na totalidade. A cidade de Porto Seguro é agradável. Arraial recebe tudo isso mas ainda é mais virada para o turista internacional. Curiosamente, no meio de tantas pizzarias, spagheterias, creperias, e até um de cozinha portuguesa, não há um único restaurante especializado na cozinha tradicional baiana. Nesta cidade cosmopolita conheci a pousada de um amigo do meu pai. Ele aqui ficará para montar um restaurante de bacalhau e moquecas. Aí me ofereceram trabalho na recepção. Fico com apenas 3 dias para pensar. Volto para Barra Grande. Aqui vivo a dúvida: ficar onde me sinto muito bem, trabalhar num restaurante e ganhar bom dinheiro ou ir para Arraial, cidade loucura onde não senti nada, mas em busca do inicio de algo no turismo, mais interessante? Pode parecer fácil de resolver, mas não. Após partilhar o meu dilema com a minha amiga, a minha confidente cuja vivência e espírito maternal me dá alguma segurança e permite retirar alguma aprendizagem, a realidade vem ao de cima. Aquela realidade que eu não queria que me fosse determinante, o trabalho e o futuro. Decido ir para Arraial. Saio de Barra uma pessoa diferente e quem sabe se Arraial é um sitio mais difícil de encontrar, mas também está lá? Talvez 4 dias naquele frenesim não tenham sido suficientes. Porquê parar por aqui, Barra Grande, a cidade que vira fantasma depois do Verão, quando o caminho se prevê longo? Se custa ir embora? Custa. Como se me estivessem a arrancar as raízes recentes e fortes criadas. Fiquei a saber que as pessoas daqui me compreendem muito bem, sabem bem o que sinto. Foi por essa razão que aqui ficaram. Voltarei eu aqui para me estabelecer ou garantir um cantinho? Quem sabe... e assim fico mais uns dias em Barra para reflectir, para me preparar para uma etapa nova: trabalho das 15 às 23 para ser simpática e prestável com os hospedes da pousada, por um salário muito baixo.

18 Novembro, Península de Maraú
Hoje acordei cheia de energia. Uma força interior que me levou até ao passeio habitual pela praia fora. Da água calma do rio até ao agitado mas para lá da ponta do Mutá. Andei até à praia dos 3 Coqueiros (são muito mais, na verdade..). lá tomei banho na piscina natural que se forma mesmo antes da zona de ondas revoltosas onde também gosto de tomar banho para me lembrar das ondas da Areia Branca. Aqui os contrastes se encontram...do mar calmo, piscina natural às ondas e mar agitado, ansioso por chegar à areia quente.
Dos 3 coqueiros sigo para outra praia de coral, Mombaça. Aí tomo banho no pico já conhecido, perto de um dos picos dos surfistas que hoje não estavam lá. A energia que me move, o sentir-me bem, faz-me continuar. São apenas mais 6 kms até Taipú de Fora. Amanhã devo ir-me embora. Algo estranho me atraía a Taipú. Percebo que estas atracções e magnetismos já não são assim tão estranhas..aliás, já soam a algo familiar e a confiança nelas faz-me ir, segura e feliz. Vou caminhando...hoje não me dói a planta dos pés como ontem, massacrada pela areia grossa. A sensação é a de pisar alfinetes. A energia que me move vai aumentando e a certeza de que estes cheiros, este calor e estes coqueiros me conhecem e reconhecem como se eu pertencesse aqui, desde sempre. Mais tarde percebo que não foi Taipú que me atraiu, mas sim todas estas praias desertas. Os coqueiros, altíssimos, ligeiramente inclinados para a praia, mas com as folhas compridas esvoaçando para terra, parecem sorrir e cumprimentar-me. Não é difícil olhar e, na embriaguez do calor e da beleza, ver no alto dos coqueiros silhuetas de rostos femininos, como sereias, sendo os cabelos as longas folhas caídas. Tento imaginar que estou aqui mas há muito tempo atrás e consigo sentir-me como um nativo. Sem pousadas, sem gente a passar de vez em quando de bicicleta. Sem ninguém. Apenas os pássaros, os peixes e eu.

A noite de lua cheia foi anteontem. Nesse dia a energia estava dispersa, os sentimentos meio pedidos e baralhados. Cheguei a sentir uma ligeira angústia. O convite para meditar pareceu-me ideal. E dou por mim numa dança para captar energias com 6 mulheres e a lua cheia. Senti uma libertação incrível. Por duas vezes o meu lado mais céptico me interrompeu. Perda de tempo? Ou para passar o tempo? Não há perda de tempo porque aqui o tempo não existe (normalmente não sei que dia é). Passar o tempo também não porque aqui tudo se vive com plena intensidade. Noutra altura talvez me sentisse ridícula, e isso passaria a quem me rodeava. Mas não. Existe energia, para Sul. No final, num terraço com vista para as estrelas, tudo se confirma. Olho para o céu numa de contemplação e vejo um circulo enorme formado pelas nuvens. No centro estamos nós e faz-me lembrar a espiral de trocas de energias da terra para a lua. Fenómeno com explicação cientifica ou não, isso não interessa para nada, porque aqui tudo é mágico e é bom que assim seja. Nessa noite sonhei muito, acordei estranhíssima, sonhei com os meus fantasmas outra vez. Alguma coisa se mexeu dentro de mim. A energia foi crescendo e hoje algumas coisas ficaram mais claras pelas praias de Barra Grande. Um pouco antes de chegar a Taipú encontro-me sozinha numa piscina natural linda. Apetece-me tirar a pouca roupa que tenho, mas só tiro metade e nado livremente e ainda me sinto mais primitiva. Neste país de calor e pouca roupa, ainda é um escândalo fazer topless... paradoxos de um país que é conservador e libertador ao mesmo tempo...a minha ansiedade natural faz-me continuar a caminhar, abandonar aquele sitio lindo. Chego a Taipú e logo percebo que não era para Taipú. Era no caminho para. No inicio deste meu passeio, depois de acordar de uma noite diferente, sentia-me dispersa, achava que precisava de alguém para me ajudar a definir o meu sonho, e a chegar a ele. Chego da caminhada com um sonho – Barra Grande – e sem ninguém para o confirmar ou partilhar. O erro de querer encontrar a vida de alguém para mim. Se já encontrei a minha terra gemea, naturalmente encontrarei a minha alma gemea. Surgirá não pelas minhas mãos, mas aos meus olhos, ali, sem poder fazer nada. Será este o ultimo pôr do sol para já? Não sei...tudo o que envolva sair daqui nunca me parece muito óbvio. Era mais fácil explicar dizendo estar apaixonada por alguém e por isso querer ficar. Mas não, é muito superior a isso. É a terra, a areia, os pássaros, a inspiração de vida. Parto, mas a certeza do regresso me confunde. O meu mar de tranqüilidade, sem qualquer artifício, só eu, o mar, o calor, os coqueiros e os pássaros. Que bom.

O regresso do passeio é especial porque ao virar da Ponta do Mutá tudo se transforma. O som contínuo do mar começa a desvanecer, vai ficando para trás um pequeno murmúrio até desaparecer para uma visão de pôr do sol com muita água calma e tranqüila.



19 Novembro
BG
Tudo o que tenho escrito tem sido como um renascer. Sinto-me como se tivesse começado do zero. Nada me prende, aqui sou toda eu. Tudo o que me rodeia e acontece é emanação minha. Voltou a minha inspiração perdida. Mas desta vez a fonte é uma sensação de êxtase com a vida e não uma angustia existencial. Para ter inspiração é preciso viver e não apenas sobreviver à custa de um ciclo vicioso que cria necessidades e angústias. O mundo que nos acolhe lá fora é o mesmo que nos tira o ar para respirar.
Fez um mês que cheguei. Sinto-me feliz e sortuda. Há quanto tempo? Ou será que alguma vez?
“A vida não pode ser apenas contemplação”. Porquê? Ela é tão importante. Se nos der as respostas para uma existência que não encontramos no mundo que nos é imposto e impingido pela televisão...é libertador. É como tomar a blue pill (Matrix), ser consciente, marginal ou rebelde, mas consciente. O dilema do dolce fare niente...não é bem fazer nada... o trabalho é de fundo, sobre o ser, a pessoa. A auto-estima e o bem estar em construção para uma existência mais feliz, imaterial. É uma fase de descoberta. Antes descobriam-se terras novas, agora descobre-se a natureza humana. Descubro que posso ser feliz com as coisas mais simples do mundo... não é o carro, a casa, o telefone... perdem-se anos com cursos e outras coisas. Ou talvez sejam também uma fase. Mas há que parar. A certa altura temos que olhar para nós. Não podemos esquecer a verdadeira natureza. Não podemos esquecer de quem somos, não em nome de um produto da sociedade que nem sequer traz felicidade. Ou melhor, trá-la associada ao poder. E aqui não sou eu o poder. O poder aqui é o mundo que me rodeia, a natureza, os pássaros, e os coqueiros. Até as melgas...

Estou perto e longe outra vez. Vou não vou? A frágil linha do equilíbrio..intangível.

20 Novembro, Valença
E decido, na véspera de ir, não ir. E da incerteza, nasce um sorriso. Vou ficar em Barra Grande, como não!!??

Na suposta última noite passada em Barra Grande conheci mais pessoas, até porque Barra vai começando a ficar povoada para o Verão. Na pretensa despedida, brindámos ao meu regresso, em tom de brincadeira. Hoje reconheço que algo em mim me dizia que eu voltaria, apesar de já ter confirmado a minha ida pra Arraial. Só não sabia era que ía desistir daí a menos de 24 horas.

Mantenho o meu lugar numa suite (quarto com wc, não necessariamente de luxo) em casa de Jô. Mantenho um lugar perto da minha recente familia em Barra (quando se está longe, os laços ficam mais fortes..), que inclui um português (!). Talvez trabalhe no seu restaurante de comida portuguesa. Oportunidades de trabalho aqui também há, e com um salário bem melhor do que aquele que ia encontrar em Arraial. Falar Inglês aqui é um trunfo muito grande. Aguardo ansiosamente os livros de francês que a minha mãe me vai enviar para recordar os ensinamentos perdidos...

Já poderei frequentar as aulas de Forró à Quarta-feira...

O que iniciei neste pequeno paraiso vai continuar...não fica interrompido um processo a meio. Quem me leu e percebeu, saberá porque decidi ficar... o meu instinto, aquele mesmo que me trouxe até aqui, foi-me dizendo aos poucos...

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